O Supremo Tribunal Federal, em julgamento plenário virtual ocorrido na última sexta-feira, a respeito da constitucionalidade do art. 48, § 3º, da Lei n. 11.343/2006, acabou se manifestando sobre questões bastante polêmicas em torno da natureza e legitimidade para a lavratura de termos circunstanciados em geral.
Muito embora o objeto central da ADI 3807 fosse um dispositivo legal específico relacionado à fase pré-processual da lei de drogas, colhem-se do voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia certas afirmações gerais a respeito do modelo investigativo preliminar brasileiro que exigem maior reflexão.
A sua tese primeira é a de que “a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência não configura ato de investigação”. Defende, com base em parcela da doutrina, que seria um mero boletim de ocorrência “mais detalhado”[i] ou “mais elaborado”[ii].
Em complemento, firma a segunda tese no sentido de que a lavratura de termo circunstanciado “não é função privativa de polícia judiciária”. Sustenta, aliás, que, não sendo procedimento investigativo, “mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que a possibilidade de sua lavratura pelo órgão judiciário (no caso do art. 48, §§ 2º e 3º, da Lei n. 11.343/2006)[iii] não ofende os §§ 1º e 4º do art. 144 da Constituição, nem interfere na imparcialidade do julgador”.
O Ministro Marco Aurélio, por sua vez, divergiu do voto da relatora, firmando posição contrária à decisão da maioria, nos seguintes moldes: i) o termo circunstanciado representa, a par do inquérito, um procedimento investigatório, voltado às infrações penais de menor potencial ofensivo, e não mero registro de ocorrência; ii) esse tipo de atividade investigatória se insere no rol de atribuições privativas da Polícia Civil (estadual ou federal).
Em seu voto dissidente, o Min. acentua ser “unívoca a feição de procedimento investigatório, manifestação do poder de polícia judiciária, cumprindo o papel de inquérito e servindo à deflagração de denúncia” com base no artigo 77, § 1º, da Lei n. 9.099/1995. Insiste que, “se dúvidas ainda pudessem existir, surgiriam afastadas ante a edição da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, cujo artigo 2º, § 1º, versa a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia”.
Relembra, ainda, que “a matéria não é nova, considerada a jurisprudência do Supremo”. Faz expressa referência ao julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 3.614, em que “o Pleno assentou a inviabilidade de policiais militares lavrarem termo circunstanciado, porquanto ato típico de polícia judiciária, voltado à apuração de infrações de menor potencial ofensivo, privativo dos delegados de polícia de carreira, nos termos do § 4º do artigo 144 da Constituição Federal”.
De fato, tem razão o Min. Marco Aurélio. O termo circunstanciado de ocorrência constitui, sim, uma modalidade de procedimento investigativo, muito embora de complexidade reduzida em face do inquérito policial.[iv] Entendê-lo como mero boletim de ocorrência significaria transferir ao Poder Judiciário toda a atividade investigativa preliminar em casos de menor potencial ofensivo, o que não parece, nem de longe, compatível com o modelo constitucional acusatório.
Por conseguinte, em sendo um procedimento de investigação criminal, deve(ria) ser de atribuição privativa da Polícia Civil estadual ou federal, também por imperativo constitucional expresso (art. 144 da CF). A opção do constituinte de 1988 foi clara ao distribuir o exercício de funções a órgãos distintos do sistema de persecução criminal.
A rediscussão desse modelo constitucional é absolutamente válida e possível, porém exige mudanças normativas, e não meras interpretações casuísticas. A questão, v.g., da lavratura de termos circunstanciados por outros órgãos policiais, que certamente será reavivada com esse “leading case” do Supremo Tribunal Federal, poderia estar na pauta do Congresso Nacional quanto a um novo desenho institucional para a segurança pública. A discussão é realmente significativa para o aprimoramento da justiça criminal, porém deve ser fruto de um intenso debate legislativo, e não de simples decisionismo judicial.
Em tempo, vale destacar, nesse contexto de infrações de menor potencial ofensivo, a necessidade mesmo de uma pauta abolicionista de inúmeras contravenções penais e tipos criminais incompatíveis com uma visão minimalista da intervenção jurídico-penal. Esse é, sem dúvida, o ponto inicial para a construção de uma justiça criminal com menor grau de irracionalidade. Aliás, esse tipo de filtragem penal, que também poderia ser realizada pelo STF, em sede de controle de constitucionalidade, é coisa rara por aqui.
Leonardo Marcondes Machado é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha), bem como especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação (www.leonardomarcondesmachado.com.br).
___________________________
[Crédito de Imagem] A fotografia utilizada na vertente publicação foi retirada do próprio sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.
[i] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 05 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 118. [ii] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 08 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 753. [iii] Lei n. 11.343/2006. Art. 48. § 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários. § 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente. [iv] “No Brasil, a investigação policial pode ocorrer atualmente por meio de dois procedimentos formais de apuração: inquérito policial (IP/IPL) ou termo circunstanciado (TC), também chamado em algumas unidades da federação de termo circunstanciado de ocorrência (TCO). As diferenças fundamentais podem ser assim resumidas: a) quanto à previsão legal: o termo circunstanciado está previsto na Lei n. 9.099/1995 enquanto o inquérito policial no Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689/41); b) quanto ao objeto de apuração: o termo circunstanciado fica reservado às infrações penais de menor potencial ofensivo, assim consideradas “as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa” (art. 61 da Lei n. 9.099/1995) enquanto o inquérito policial às demais espécies de fatos puníveis criminalmente; c) quanto aos atos de constituição: o termo circunstanciado representa um procedimento de menor complexidade (não só pelo número de atos como também pela sua natureza formativa) se comparado ao inquérito policial; d) quanto ao órgão jurisdicional de controle (e remessa): o termo circunstanciado fica submetido à competência do juizado especial criminal (procedimento comum sumaríssimo) ao passo que o inquérito policial à competência do ‘juiz das garantias’ (conforme a Lei n. 13.964/2019 – eficácia suspensa pelo STF)” (MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 17).
Comments