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Retroatividade (Benéfica) da Lei Processual Penal



A eficácia temporal das normas em geral no direito brasileiro é disciplinada pelo Decreto-Lei n. 4.657/1942, especialmente em seus artigos 1º, 2º e 6º. Já no que toca às normas processuais penais, há regra expressa no art. 2º do CPP, senão vejamos: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.


Nesse sentido, o posicionamento tradicional da doutrina é de que as normas processuais penais teriam aplicação imediata e sem efeito retroativo.[1] Isso quer dizer que, após a entrada em vigor da lei processual penal, uma vez superado o período de vacatio legis, acaso existente, seria aplicada instantaneamente, inclusive em face dos processos penais em curso, porém sem prejuízo quanto à validade dos atos processuais anteriormente praticados. Fala-se, classicamente, na regra do “tempus regit actum ou da imediatidade.


Frise-se que, segundo a interpretação majoritária conferida ao art. 2º do CPP, seriam dois os efeitos básicos reconhecidos à nova lei processual penal: a) validade dos atos processuais anteriores, praticados sob o império da lei processual penal antiga; b) vigência imediata da lei processual penal nova, independentemente da data de início do processo ou mesmo do suposto ilícito criminal em questão.[2]


As perguntas, no entanto, que se colocam são as seguintes: todas as leis processuais penais submetem-se à regra da imediatidade prevista no art. 2º do CPP? Não há possibilidade de aplicação retroativa benéfica de lei processual penal? Sempre a lei processual penal aplica-se imediatamente? Não há qualquer exceção à aplicação imediata da lei processual penal, ainda que prejudicial ao investigado ou ao réu?


Há uma corrente minoritária, porém de grande expressão, na doutrina (penal e processual penal) que defende a tese da aplicação do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica e irretroatividade da lei penal mais gravosa também ao âmbito processual penal. Assim o faz mediante processo de releitura constitucional do Código de Processo Penal e da própria noção sistêmica integrada[3] dada a relação de instrumentalidade concreta (ou substancial) entre direito penal e direito processual penal, entre delito e processo, entre lei penal e lei processual penal.


Esse posicionamento doutrinário, que não é apenas brasileiro, parte do seguinte pressuposto: “(...) o princípio jurídico-constitucional da legalidade se estende, em certo sentido, a toda a repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal”[4]. Entre nós, a base fundamental desse raciocínio se extrai do art. 5º, XL, da Constituição: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.


Nilo Batista e Eugenio Zaffaroni, na contramão da leitura tradicional,[5] afirmam que a tese da inexistência de vedação constitucional à “retroatividade in pejus na aplicação de uma lei processual posterior ao cometimento do crime, porque o momento a levar-se em consideração é o do ato processual e não o da ação ou omissão delituosa” não possui fundamento exegético nem histórico no contexto brasileiro.[6] Além do que, em face de um paradigma minimalista, tal qual defendido por Alessandro Baratta, um dos primeiros critérios de limitação formal ao exercício do poder punitivo deve consistir na aplicação das garantias contidas no princípio da legalidade penal a cada um dos subsistemas de administração da justiça criminal (inclusive, por óbvio, ao processo penal).[7]


Nesse viés, com apoio em Baratta, Batista e Zaffaroni, Juarez Cirino estabelece que dois são os aspectos do princípio constitucional da lei penal mais favorável: - “primeiro, o primado do direito penal substancial determina a extensão das garantias do princípio da legalidade ao subsistema de imputação (assim como aos subsistemas de indiciamento e de execução penal), porque a coerção processual é a própria realização da coação punitiva; - “segundo, o gênero lei penal abrange as espécies lei penal material e lei penal processual, regidas pelo mesmo princípio fundamental”.[8]


A consequência fundamental desse tipo de pensamento integrativo, de base constitucional limitadora do poder estatal, é que não se deve aplicar “a nova lei processual penal a acto ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa”.[9] De modo semelhante, ainda que sob fundamento conceitual diverso, Alberto Binder também defende “a retroatividade da lei processual mais favorável”, devendo-se entender por legislação mais favorável aquela que “fortalece o sentido político-criminal do processo, tal como foi previsto na Constituição”.[10]


Nesse cenário, conforme ensina Aury Lopes Júnior, tem-se que: - “a lei processual penal mais gravosa não incide naquele processo, mas somente naqueles cujos crimes tenham sido praticados após a vigência da lei”; - “por outro lado, a lei processual penal mais benéfica poderá perfeitamente retroagir para beneficiar o réu”.[11]


Em resumo, é possível pensar de forma alternativa, distinta da concepção tradicional, as questões de eficácia temporal da lei processual penal, de modo que, na visão de Queiroz e Vieira, [12] teríamos o seguinte quadro geral:


a) se as leis processuais penais são prejudiciais ao réu (porque retiram ou diminuem garantias – ex.: aumentam prazos de duração de prisão provisória, vedam liberdade provisória mediante fiança ou suprimem recursos) têm aplicação limitada aos processos atinentes às infrações penais praticadas após a sua entrada em vigor;


b) se as leis processuais penais são favoráveis ao réu (porque aumentam garantias – ex.: diminuem prazos de duração de prisão provisória, admitem liberdade provisória mediante fiança ou ampliam recursos) têm aplicação imediata e retroativa, determinando, inclusive, a depender da fase processual, a renovação de atos processuais (já praticados) quanto às infrações penais anteriores à sua entrada em vigor;

c) apenas nos casos de leis meramente procedimentais (sem qualquer grau de interferência nas garantias do réu – ex.: altera o processamento dos recursos ou o modo de cumprimento de cartas rogatórias) que se aplica a regra geral da imediatidade tal como insculpida no art. 2º do CPP, alcançando o processo no estado em que se encontra, sem prejuízo da validade dos atos anteriores.


Leonardo Marcondes Machado é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha), bem como especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação (www.leonardomarcondesmachado.com.br).


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[1] “Não se trata, como se poderia pensar, de retroatividade. Retroagiria ela se fosse alcançar os atos anteriormente realizados, o que não sucede, pois é expresso que eles permanecem válidos. Retroatividade há apenas em relação ao crime – lei posterior a ele –, porém, tal fato é indiferente” (NORONHA, Edgard de Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 12).

[2] Registre-se, no entanto, a crítica de Figueiredo Dias a essa posição tradicional que desconsidera o momento de início do processo na análise do “direito transitório”, o qual deveria assumir uma “particular importância” no campo jurídico processual penal. Segundo o professor de Coimbra, “a circunstância de o processo ser constituído por uma longa e complexa tramitação, em que os diversos actos se encadeiam uns nos outros de forma por vezes inextricável, pode conduzir a que se deve aplicar uma alteração legislativa processual apenas aos processos iniciados na vigência da lei nova – mesmo que a solução contrária não conduza directamente a pôr em causa o valor de um acto ou situação constituído à sombra da lei antiga” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. 01 ed. v. 01. Coimbra: Coimbra Editora, 1974, reimpressão 1984, p. 111). Semelhante conclusão, embora partindo de outra base conceitual, a do processo como unidade “dotada de um certo significado de política criminal”, é exposta por Alberto Binder (BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal. Trad. Fernando Zani. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 97-98).

[3] “Quais as implicações da unidade ou circularidade dessa relação entre direito penal e processo penal? Possivelmente o mais importante é que os princípios devem incidir de modo unitário, porque os princípios penais são os princípios processuais penais (...) quer se trate de norma penal, quer de norma processual, há de retroagir sempre que for mais favorável ao imputado (...) O princípio é, pois, o mesmo: a lei (penal ou processual penal) não pode retroagir para prejudicar o réu” (QUEIROZ, Paulo. Direito Processual Penal: por um sistema integrado de direito, processo e execução penal. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 31-32).

[4] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal..., p. 112.

[5] “O erro dos que falam em lei processual retroativa está em que focalizam a aplicabilidade da norma, não em função do processo, e, sim, relativamente ao crime que deste é objeto” (...) “A invocação da lei mais branda é, portanto, critério inadmissível em matéria de conflito de normas processuais penais no tempo” (...) “Nada mais condenável que esse alargamento da lei penal mais branda, porquanto invade os domínios do direito processual, em que vigoram diretrizes diversas no tocante às normas intertemporais” (MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. v. 1. Campinas: Bookseller, 1997, pp. 55, 58 e 59).

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. v. 1. 03 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 218-220.

[7]El principio del primado de la ley penal sustancial tiene el propósito de asegurar la extensión de las garantías contenidas en el principio de legalidad a la situación del individuo en cada uno de los subsistemas en que puede ser subdividido el sistema penal, esto es, frente a la acción de la policía, dentro del proceso y en la ejecución de la pena. La limitación de los derechos del individuo, en cada uno de los subsistemas de la administración de la justicia penal, no puede superar las restricciones previstas taxativamente por la ley penal para los delitos de que pueda ser sospechado, imputado o condenado. Este principio excluye la introducción, de hecho o de derecho, de medidas restrictivas de los derechos del individuo, en el reglamento y en la práctica de los órganos de policía, del proceso y de la ejecución, que no sean estrictamente necesarias a los fines de la correcta y segura aplicación de la ley penal sustancial” (BARATTA, Alessandro, Criminología y Sistema Penal (Compilación in memoriam). Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 306-307).

[8] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 52-53.

[9] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal..., p. 112.

[10] BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito Processual Penal..., p. 98. O autor complementa: “Se na Constituição Nacional o processo penal é apresentado, fundamentalmente, como um regime de garantias sobre o poder penal do Estado, qualquer lei que favoreça esta opção teria efeitos retroativos que, inclusive, podem levar à renovação do ato que foi realizado com menos garantias” (BINDER, Alberto M. Introdução ao Direito ProcessualPenal..., p. 98).

[11] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 114.

[12] QUEIROZ, Paulo; VIEIRA, Antonio. Retroatividade da Lei Processual Penal e Garantismo. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 143, p. 14-17, out./2004.

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