No modelo brasileiro ainda é possível que o judiciário assuma lugar como órgão de presidência da investigação criminal, inclusive o próprio Supremo Tribunal Federal.[1]
Além dos casos de foro especial por prerrogativa de função, existem as chamadas “apurações interna corporis”, assim classificadas por dois critérios distintos, um de viés subjetivo, relacionado à figura do investigado, e outro de caráter objetivo, vinculado ao local de cometimento do suposto fato criminoso. Se a notícia crime recair sobre uma autoridade judicial ou tiver como espaço físico de ocorrência a “sede ou dependências do Tribunal”, tem-se, mediante previsões legais e regimentais, que a condução dessa investigação preliminar incumbe a órgão do próprio Poder Judiciário.
Segundo o art. 33, § único, da LC n. 35/79 (LOMAN), “quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação”. Ou seja: a notícia crime envolvendo membros do judiciário deve ser investigada sob a direção desse mesmo poder, mais especificamente do tribunal competente para o julgamento de eventual processo penal contra o imputado.
É o que se colhe, também, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos: “(...) Diante da presença de simples indícios do cometimento de ilícitos por parte de magistrado federal, autoridade que possui foro privilegiado, o Delegado Chefe da Delegacia de Polícia Federal de Chapecó/SC deveria ter encaminhado a notitia criminis para o Tribunal competente, nos termos do artigo 33, parágrafo único, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/1979)”.[2] Em outra situação, cujo suspeito era um Desembargador de Tribunal de Justiça, assim decidiu: “(...) assinala-se competir ao Ministro Relator, integrante da Corte Especial, presidir e ordenar a tramitação do inquérito de competência originária deste Superior Tribunal de Justiça, adotando as providências necessárias ao êxito das investigações e as que se revelarem urgentes, submetendo-as, ad referendum do colegiado, inclusive, por meio, da presente insurgência recursal, o que não enseja qualquer ofensa ao princípio do juiz natural”.[3]
Neste particular, vale destacar o entendimento de Pacelli no sentido da inconstitucionalidade (ou “não recepção”) desse dispositivo da LOMAN, que reserva ao órgão superior da magistratura a “privatividade” para a investigação de fato criminoso imputado a juiz. Os argumentos são basicamente os de que (i) a Constituição não reconhece poderes investigatórios aos juízes (ao juiz não é dado investigar) e (ii) que reserva à polícia judiciária, embora sem exclusividade, a missão de presidência das investigações criminais. Portanto, a única coisa que restaria vedada, nesses casos, seria o indiciamento de membro da magistratura sem autorização expressa do órgão de jurisdição competente para o julgamento da matéria.[4]
Igualmente problemáticas são as previsões regimentais investigativas criminais atinentes à chamada “polícia do tribunal”. Tome-se como exemplo os tribunais superiores.[5] Tanto no regimento interno do STF (art. 43) quanto do STJ (art. 58) consta a seguinte regra procedimental: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal”.
Se não bastassem enormes dúvidas a respeito da constitucionalidade desse “poder investigativo judicial”, seja pelo exercício da “polícia do tribunal”, seja pela notícia criminosa envolvendo membro da magistratura, sobram ainda problemas de ordem pragmática, uma vez que o Poder Judiciário não foi preparado para exercer essa função e, portanto, sequer dispõe de estrutura administrativa para tanto. Ainda que se valha do corpo policial, a direção investigativa pela autoridade judiciária resta comprometida pela ausência de conhecimento técnico nessa área.[6] Enfim, uma dupla tragédia: jurídica e operacional.
[1] Vide as críticas a esse respeito em: MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, pp. 151 - 161.
[2] STJ – Quinta Turma – Rel. Min. Jorge Mussi – HC n. 130.789/SC – j. em 09.08.2011 – DJe de 26.08.2011.
[3] STJ – Corte Especial – AgRg no Inq 743/MG – Rel. Min. Massami Uyeda – j. em 17.08.2011 – DJe de 10.11.2011.
[4] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 94 e 86.
[5] A mesma lógica normativa pode ser encontrada nos regimentos internos de tribunais regionais federais e tribunais de justiça estaduais. Cite-se, v.g., o art. 359 do RITJSC: “Se ocorrer infração à lei penal na sede ou em dependência do Tribunal de Justiça, o presidente: I – requisitará a presença de autoridade policial de plantão para a lavratura do auto de prisão em flagrante se for o caso; II – mandará instaurar inquérito se a infração envolver pessoa sujeita a sua jurisdição; e III – comunicará o fato à autoridade competente para a instauração de inquérito”.
[6] FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Rubens Almeida Passos de. A Colaboração da Polícia Civil na Investigação nos Casos de Foro por Prerrogativa de Funções. In: GUSSO, Rodrigo Bueno; SOUZA, David Tarciso Queiroz de. (Org.). Estudos sobre o Papel da Polícia Civil em um Estado Democrático de Direito. 1ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 186.
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